sexta-feira, 4 de junho de 2021

Região de Cachoeira do Sul pode ser o epicentro da pandemia no RS

 


Quinto município mais antigo do Rio Grande do Sul, com 81,8 mil habitantes e encravado na porção central do Estado, Cachoeira do Sul sofre a explosão do coronavírus, sobretudo nos meses de março e maio. A curva ascendente de novos casos confirmados na região é superior à do Rio Grande do Sul no período. Somente nos últimos sete dias, o Estado teve incidência acumulada de 236,1 testes positivos por 100 mil habitantes. Na região de Cachoeira do Sul, quase o triplo: 601,4. 

As consequências mais perceptíveis foram três: multiplicação de óbitos — foram 24 em 2020 e já são cem em 2021 —, superlotação do Hospital de Caridade e Beneficência (HCB) e interrupção das atividades econômicas em períodos intermitentes para tentar reduzir a contaminação, o que acirrou ânimos, gerou perdas e causou revolta em setores da cidade.

Cachoeira do Sul manteve o número de novos casos sob controle em praticamente todo o ano de 2020 (veja quadro ao final). Somente na segunda quinzena de dezembro, às voltas das festas de final de ano, é que houve um primeiro pico, mas a partir da virada do ano já observou-se queda e estabilização. 

Em 1º de janeiro, assumiu como prefeito o ex-deputado federal José Otávio Germano (PP), sucedendo a Sergio Ghignatti. Germano imprimiu uma gestão mais flexível. Análise de 20 decretos do seu governo relativos à pandemia mostra que os meses de janeiro e fevereiro foram de flexibilizações, época em que os números sugeriam estabilidade. 

O prefeito chamou os funcionários públicos ao trabalho presencial, autorizou missas e a ocupação do Balneário Praia Nova, à margem do Rio Jacuí (ver quadro). Os treinos de tiro de laço, uma tradição local, também foram liberados. A prefeitura destacou que as competições eram proibidas, mas isso não impediu a realização de um torneio com dezenas de competidores. 

Germano deu uma de suas tacadas mais ousadas rumo à normalidade em 1º de fevereiro de 2021: autorizou festas de casamento, formatura e aniversário em casas de festas, buffetts e clubes sociais, inclusive em ambientes fechados, com a observação de público limite e vedação de uso da pista de dança. Vinte dias depois, com sinais de agravamento da pandemia, o prefeito voltaria atrás e proibiria as festas e eventos. 

Na sequência, o governador Eduardo Leite decretou a bandeira preta em todo o Estado, o que perduraria por nove semanas. Germano refuta a hipótese de que seus decretos promovendo abertura possam ter ampliado a disseminação do vírus em janeiro e fevereiro, cuja explosão e colapso do sistema de saúde viriam a partir de março.   

— Não (contribuiu para a alta), porque as outras cidades da região já estavam assim também — justifica o prefeito, referindo-se às atividades permitidas.

O pico de casos de março atingiu todo o Rio Grande do Sul, mas a onda que se estendeu até maio é maior em Cachoeira do Sul. São aventadas diversas possibilidades para o cenário: uma delas, que prejudicou o Estado de forma geral, foram as férias de final de ano, o carnaval e as viagens ao Litoral.

Em 20 de março, o governo do RS liberou a cogestão no sistema de distanciamento controlado que permitia aos municípios, mesmo em bandeira preta, a flexibilização de algumas atividades, como o comércio. Foi o que fez Germano. Embora a cidade seja movida pela agricultura, principalmente o plantio de soja e arroz, a zona urbana é calcada no comércio e as restrições geraram perdas. 

Apesar de ter liberado atividades, o prefeito tem enfrentado oposição ferrenha de representativos setores da sociedade cachoeirense que não concordam com as restrições. A volta progressiva das atividades, quando os casos ainda estavam em alta, em abril, teria sido o trampolim para o novo pulo em maio.

— A velocidade dos casos em Cachoeira do Sul, em maio, foi muito forte. E o aumento da mobilidade foi muito forte desde abril. É uma correlação. Quanto mais mobilidade, maior a chance de colocar infectados em contato com pessoas sadias. Esse risco é reduzido quando se usa máscara, álcool gel e se respeita o distanciamento, mas, às vezes, um evento específico pode causar um surto e um estrago muito grande — diz Isaac Schrarstzhaupt, cientista de dados e coordenador da Rede Análise Covid-19.

Pela consolidação de dados do Google, Schrarstzhaupt conseguiu verificar que, nos períodos de decretos mais permissivos, houve significativo trânsito de pessoas no comércio cachoeirense. Efeito imediato, os gráficos mostraram menos pessoas em casa.

Germano avalia que a restrição de atividades não reduziu a circulação a ponto de causar queda brusca nos novos casos. Por isso, na última segunda (31), após uma semana de fechamento do comércio e de ter enfrentado uma carreata de protesto, o prefeito resolveu voltar a liberar as atividades mesmo em época de alta disseminação do vírus. O município, agora, adotará estratégia de testar em massa seus habitantes. A intenção é identificar e isolar os positivados, com equipes de fiscalização checando diariamente se eles estão cumprindo a quarentena dentro de casa, um plano ousado e que depende de estrutura e organização. A prefeitura disporá de menos de 50 fiscais para essa tarefa. 

— É um plano interessante. Ele permite o funcionamento da economia com a possibilidade de isolamento e fiscalização dos positivados. Tentamos fechar o comércio, achando que as pessoas ficariam em casa, mas não ficaram. Foram para a rua igual. Fizeram de cada supermercado um shopping — diz Germano.

A prefeitura também afirma ter recebido da Secretaria Estadual da Saúde (SES) a confirmação de que a variante P.1, mais contagiosa e agressiva, está circulando em Cachoeira do Sul. O fato de a região constar entre as que mais vacinaram a população — é a sétima colocada dentre 21 — é apontado como possível motivo de relaxamento nos cuidados. A zona Covid-19 de Cachoeira do Sul reúne, no total, 12 municípios: 30,6% dos habitantes locais tomaram a primeira dose e 14,8%, a segunda, conforme dados oficiais do dia 2 de junho.   

A zona Covid-19 de Cachoeira do Sul tem cerca de 200 mil moradores. O Hospital de Caridade e Beneficência (HCB) é a referência, o único por ali capaz de ofertar leitos de UTI e atendimento de alta complexidade. 

A instituição contava com 10 leitos gerais de UTI e, ao longo de 2020, habilitou com o governo estadual a criação de mais 10 unidades exclusivamente para o atendimento covid-19.  

Com o pico de casos e internados em 2021, o HCB entrou em colapso. Chegou a atingir 185% de lotação nos leitos de UTI e, ao longo de todo o mês de maio, operou em níveis de ocupação entre 122% e 150%.

Para dar conta da demanda, a gestão de José Otávio Germano assinou convênio, em 4 de março, com o HCB — hospital de gestão autônoma — para a criação de sete leitos extras de UTI. Nesse mesmo período, a Secretaria Estadual da Saúde (SES) enviou respiradores para tornar adequadas as unidades: foram remetidos cinco aparelhos em 2 de março e outros cinco no dia 14 do mesmo mês. As sete UTIs extras foram cadastradas pelo HCB no sistema oficial de regulação da SES, o Gerint, em 9 de abril. A partir dali, entraram na rota do sistema de regulação de leitos, que procura vagas pelo Estado quando uma região fica sem alternativa. 

Semanas depois, em 2 e 10 de maio, os sete leitos foram descadastrados. Embora os respiradores tenham permanecido no HCB, tanto a direção do hospital quanto a prefeitura de Cachoeira do Sul confirmaram que as unidades foram retiradas do sistema porque estavam recebendo pacientes de fora. Esses sete leitos continuam existindo e recebendo pacientes, embora não constem no mapa de leitos da SES. Eles são financiados pelo município, que paga ao HCB a quantia de R$ 1,6 mil por dia utilizado de cada unidade.

“Abrimos sete leitos extras de UTI covid não habilitados pelo SUS, pois não atendem todas as condições exigidas como tal, e estão sendo custeados pela prefeitura. Foram cadastrados por solicitação da prefeitura no monitoramento do Estado e no Gerint também, passando a serem regulados pelo Estado. No entanto, foram posteriormente retirados do monitoramento e do Gerint, pois o Estado estava encaminhando diversos pacientes de fora da região mesmo com 100% de ocupação, reduzindo a oferta de leitos para município e região. A prefeitura continua custeando esses leitos extras e que se mantêm ocupados desde março”, informou, em nota, a direção do HCB. 

O segundo episódio marcante da gestão Germano quanto ao atendimento de saúde faz menção ao hospital de campanha que existia na cidade. A estrutura, de 53 leitos clínicos, foi montada em maio de 2020, na gestão do prefeito anterior, Sergio Ghignatti, mas não teve uso até dezembro. Como a pandemia estava em patamares razoáveis na região, seus leitos permaneceram vazios. Em 1º de fevereiro, foi anunciada a decisão de desmontar a estrutura, tomada em consenso pela prefeitura e a direção do HCB. Uma das justificativas para a desmontagem era o custo mensal com aluguel, de R$ 22 mil. Poucas semanas após a iniciativa, entre o final de fevereiro e início de março, o HCB entraria em colapso. No dia 2 de junho, segundo o mapa da SES atualizado às 14h08min, o HCB tinha 166,7% de ocupação nas unidades clínicas de covid-19. Germano avalia que ter mantido os 53 leitos do hospital de campanha não faria diferença. 

— Não iria servir. Não tinha UTI lá, não tinha aparelhagem de respiração. Seria só incomodação. Os médicos não queriam atender lá, não tem especificação de hospital, não tem nada parecido com hospital — justifica o prefeito. 

Reportagem Especial de ZH

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